Pela primeira vez, um ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, está sendo julgado por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito no Brasil. No banco dos réus, civis e militares compõem uma cena inédita, que agora já tomam conta de jornais, páginas em redes sociais, memes, mas o resultado do aguardado do julgamento neste mês de setembro é, em suma, um recado institucional forte em defesa da democracia.
O país que não puniu seus torturadores e ditadores do passado, apesar dos gritos de “Ditadura nunca mais” e “não vai ter golpe” encara, agora, diante do Supremo, o fantasma de uma tentativa violenta de ruptura democrática, com relatos, inclusive, de planos que incluíam o assassinato do presidente eleito, do vice e de membros do Judiciário.
Estarão diante da Justiça o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete aliados, acusados de tentar um golpe de Estado após as eleições de 2022. A partir das 884 páginas do relatório da Polícia Federal (PF), eles responderão por organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça, além de deterioração de patrimônio tombado.
Um julgamento que fala de passado
O julgamento do processo que começou no dia 02 de setembro, não fala apenas de 2022 ou de 8 de janeiro de 2023. Ele reapresenta uma linhagem de autoritarismo que sobreviveu intacta por décadas, mas que vem à tona a revelia de seus autores: crimes da ditadura sem julgamento, violações registradas no relatório Brasil: Nunca Mais (1985), que documentou centenas de casos de tortura a partir de arquivos militares, e a criação da Comissão Nacional da Verdade (2011–2014), que identificou 434 mortos e desaparecidos e responsabilizou 377 agentes do Estado. Nenhum deles, contudo, foi condenado.
Essa ausência de responsabilização foi reforçada pela Lei da Anistia de 1979, que blindou agentes da ditadura e garantiu décadas de impunidade. Apenas em 2021, mais de 40 anos depois, ocorreu a primeira condenação relacionada ao período: um torturador punido por crime de sequestro considerado contínuo. A demora histórica ajuda a dimensionar a importância do julgamento atual.
A presidência como puxadinho do golpe
Os réus são acusados de usar a Presidência e braços administrativos do Estado, como a Abin, para tramar um golpe de Estado e monitorar jornalistas, opositores e políticos. A gravidade dos fatos dá o tom do horizonte que se abre: enfrentar os monstros do passado para afirmar a força da Constituição e de apelos populares.
Além de Bolsonaro, estão entre os réus nomes de peso da antiga cúpula militar e política: Alexandre Ramagem (ex-diretor da Abin, com parte das acusações suspensas por foro e respondendo a três dos cinco crimes), o almirante Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça), os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto, e o tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens).
Consequências para militares e para o bolsonarismo
As possíveis condenações vão além da prisão. Especialistas em direito militar lembram que, em caso de penas superiores a dois anos, os réus militares podem perder patentes. O processo envolve trâmites em Conselhos de Justificação das Forças, mas o efeito político é imediato: o Brasil pode assistir à primeira perda formal de postos militares de alta patente por crimes contra a democracia.
O julgamento também redefine o futuro do bolsonarismo. Jair Bolsonaro já está inelegível até 2030, mas agora enfrenta o risco real de prisão e de entrar para a história como o primeiro ex-presidente condenado por tentativa de golpe. Para muitos analistas, a responsabilização rompe um ciclo de impunidade que atravessou gerações, do golpe de 1964 aos atentados do Riocentro em 1981.
Se condenado, Bolsonaro se tornará símbolo de um divisor de águas: a transição de um Brasil marcado pela impunidade para um país capaz de afirmar que democracia não é negociável.
O governo Bolsonaro entrou para a história como o que mais abrigou militares desde a ditadura de 1964.
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